22 de jul. de 2009


Ouvir o silêncio

Dia desses eu brinquei com as conchas aqui em casa. Isso, tenho mania de colecionar de cada praia, a que eu acho a mais bonita. As conchinhas do mar... Lembrei das brincadeiras de colocá-las no ouvido e escutar todo o mar. Todo o mar...que é o barulho do silêncio. Só com as conchinhas do mar que se pode ouvir o silêncio. A quietude que cessa a ansiedade ensurdecedora de falar, questionar, discutir, provar, duvidar, perguntar, julgar, opinar... E nunca ouvir. Dentro da concha há tantos mistérios silenciados. Ficar ali escutando todas as historias do mar, sentindo o cheiro do vento e deixando a água inundar a alma. Ouvir o silêncio. Sentir o silêncio. Chorar o silêncio. Sorrir, e agradecer o despertar do silêncio... Silenciar a quietude é ficar assim como a conchinha do mar, serena, encantada e é levada. Sem defesas se deixa levar e apenas oferece a música do mar que nem é dela.... Apenas aquieta, acalenta e ensina lição tão esquecida entre nós: doar. Esse fenômeno de “ouvir o mar” conhecemos como reverberação, a soma dos várias "ecos" produzidos dentro da concha. Assim a concha se parece com a alma, quando silenciada... Dentro da concha, as ondas sonoras repercutem, refletindo-se em cada uma das paredes, assim como a fala de alguém numa caverna. E assim é... Fui tão longe, tão longe e apreendi naquele exato momento que humanizar-se é se entender com a natureza, seus movimentos e principalmente suas belas lições. Não há nada de mais nessa minha vontade quase ensurdecedora de silenciar e apenas ouvir. Não há nada de mais, é tão natural, meu desejo de ser inverno e trazer o mar dentro de mim. Silenciar e sentir vibrar o coração com o sentimento maior do mundo: o amor. Amar também é apenas ouvir o silêncio. Assim como a concha, a concha e o mar...

21 de jul. de 2009

PazAmorPazAmorPaz


As perguntas me cansaram, tanto e tanto
Ainda bem. Cansaço que chegou a soterrar
Vontades, desejos, frescor, ânsia...
Cessaram todas.
Eram quase bengalas usadas na fuga
da realidade, umas vezes nua e crua, outras cheia de
fantasmas inventados
Elas, eu as execrei para todo o sempre
Amém. Agora sinto meu e o teu olhar
Sinto a respiração até do vizinho
E por que não...sinto que tudo pode
Até você se despedir.
Faz mal, não. Elas foram embora
E também foram os medos.
orgulho, a guerra.
Só paz.
Tao bom assim.
Se você me visse
Dizem as mais experientes
Encantaria, viria, procuraria
Agora que não há mais o que perguntar
Estou enamorada
desta paz que hoje
tomou conta de mim...
Se for assim , igualzinho a esta inundante paz
Então, venha devagarzinho
Sente-se ao meu lado
Faça-me sorrir
Respeite se o silêncio imperar entre nós
Abençoe-me com o seu abraço
Assegure-me que a paz são as tuas mãos que você
me dá ao anoitecer, quando há o perigo
ao amanhecer de todas voltarem
a me atormentar.
Caso contrário, pode ir, vá embora.
Pois é da paz que eu já tenho
que preciso em você.
Apenas siga
Pronto.
Tudo pronto
Pronto e pronto e pronto.
Meu amor, a vida vai
Vem, vai e vem.
Ninguém sabe por onde
Vai.
Apenas siga, correnteza
maré, pegadas na areia...
Apenas siga.
Respire e ponto
Tudo pronto
Pronto e pronto e pronto
Meu amor, a vida vai
Sem você
Se assim quiser
Ninguém sabe
Por onde
Vai.
Apenas siga...
Um dia vem.
Apenas siga






anacarolinacaldas

20 de jul. de 2009

Poema do Menino Jesus
de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)


Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas pelas estradas
Que vão em ranchos pela estradas
com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
"Se é que ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer nos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

Fernando Pessoa - Alberto Caeiro