28 de jan. de 2009


Chuvas



Há lugares onde chove muito. Dias e dias de chuva intensa ou, simplesmente, trombas d’água nos finais de tarde. Em outros, onde também chove muito, a chuva é diferente: mais suave. Ali habituamo-nos ao tilintar da água batendo na janela na escuridão da noite, como um inseto distante, insistente e tranqüilizador.Levantamo-nos no meio da noite, abrimos um pouco a cortina e ficamos espiando a lavagem dos pecados do mundo com uma xícara de chocolate quente nas mãos. Chuva com garganta quente e nenhuma ousadia nova, apenas o conforto da vida acomodada e as vontades rodeadas de um sono aposentado.



seção 100 palavras do www.glauperpiva.blogspot.com

27 de jan. de 2009

Obama, por José Saramago

A Martin Luther King mataram-no. Quarenta mil polícias velam em Washington para que hoje não suceda o mesmo a Barack Obama. Não sucederá, digo, como se na minha mão estivesse o poder de esconjurar as piores desgraças. Seria como matar duas vezes o mesmo sonho. Talvez todos sejamos crentes desta nova fé política que irrompeu em Estados Unidos como um tsunami benévolo que tudo vai levar adiante separando o trigo do joio e a palha do grão, talvez afinal continuemos a acreditar em milagres, em algo que venha de fora para salvar-nos no último instante, entre outras coisas, desse outro tsunami que está arrasando o mundo. Camus dizia que se alguém quisesse ser reconhecido bastar-lhe-ia dizer quem é. Não sou tão optimista, pois, em minha opinião, a maior dificuldade está precisamente na indagação de quem somos, nos modos e nos meios para o alcançar. Porém, fosse por simples casualidade, fosse de caso pensado, Obama, nos seus múltiplos discursos e entrevistas, disse tanto de si mesmo, com tanta convicção e aparente sinceridade, que a todos já nos parece conhecê-lo intimamente e desde sempre. O presidente dos Estados Unidos que hoje toma posse resolverá ou intentará resolver os tremendos problemas que o estão esperando, talvez acerte, talvez não, e algo nas suas insuficiências, que certamente terá, vamos ter de lhe perdoar, porque errar é próprio do homem como por experiência tivemos de aprender à nossa custa. O que não lhe perdoaríamos jamais é que viesse a negar, deturpar ou falsear uma só das palavras que tenha pronunciado ou escrito. Poderá não conseguir levar a paz ao Médio Oriente, por exemplo, mas não lhe permitiremos que cubra o fracasso, se tal se der, com um discurso enganoso. Sabemos tudo de discursos enganosos, senhor presidente, veja lá no que se mete.


Donde? por José Saramago

Donde saiu este homem? Não peço que me digam onde nasceu, quem foram os seus pais, que estudos fez, que projecto de vida desenhou para si e para a sua família. Tudo isso mais ou menos o sabemos, tenho aí a sua autobiografia, livro sério e sincero, além de inteligentemente escrito. Quando pergunto donde saiu Barack Obama estou a manifestar a minha perplexidade por este tempo que vivemos, cínico, desesperançado, sombrio, terrível em mil dos seus aspectos, ter gerado uma pessoa (é um homem, podia ser uma mulher) que levanta a voz para falar de valores, de responsabilidade pessoal e colectiva, de respeito pelo trabalho, também pela memória daqueles que nos antecederam na vida. Estes conceitos que alguma vez foram o cimento da melhor convivência humana sofreram por muito tempo o desprezo dos poderosos, esses mesmos que, a partir de hoje (tenham-no por certo), vão vestir à pressa o novo figurino e clamar em todos os tons: “Eu também, eu também.” Barack Obama, no seu discurso, deu-nos razões (as razões) para que não nos deixemos enganar. O mundo pode ser melhor do que isto a que parecemos ter sido condenados. No fundo, o que Obama nos veio dizer é que outro mundo é possível. Muitos de nós já o vinhamos dizendo há muito. Talvez a ocasião seja boa para que tentemos pôr-nos de acordo sobre o modo e a maneira. Para começar.





do blog http://caderno.josesaramago.org/

19 de jan. de 2009

Desenredo


Por toda terra que passo
Me espanta tudo o que vejo
A morte tece seu fio
De vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto
O olhar que solta anda preso
Mas quando eu chego
Eu me enredo
Nas tranças do teu desejo
O mundo todo marcado
A ferro, fogo e desprezo
A vida é o fio do tempo
A morte é o fim do novelo
O olhar que assusta
Anda morto
O olhar que avisa
Anda aceso
Mas quando eu chego
Eu me perco
Nas tramas do teu segredo
Ê, Minas
Ê, Minas
É hora de partir
Eu vou
Vou-me embora pra bem longe
A cera da vela queimando
O homem fazendo o seu preço
A morte que a vida anda armando
A vida que a morte anda tendo
O olhar mais fraco anda afoito
O olhar mais forte, indefeso
Mas quando eu chego
Eu me enrosco
Nas cordas do teu cabelo


Letra: Renato Braz
Composição: Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro

10 de jan. de 2009

Caminho

Quem é que disse que é desse jeito que se caminha?
A religião. A moral. O capital. O cordão umbilical.
Ninguém tem nada a ver com isso
Vá viver, então!
Quem é que disse que é desse jeito que se caminha?
O amor. A solidariedade. A missão. A loucura reinventada.
A paixão. A saúde. A alegria. A respiração. A alma.
Você tem tudo a ver com isso.
Fresta


Cruzou a fresta do tempo sem luvas nas mãos. Tateou pregos, gelatinas e borrachas. Evaporou-se em idéias de algodão. Ajoelhou-se e pôs-se a pensar nas cores da noite, nos cheiros do dia, nas dores do entardecer.Percebeu que os hematomas não são filhos das pancadas. São paridos por teimosia. Em cada roxo na alma, dezenas de arestas foram polidas com a língua. Milhares de esquinas foram deixadas à míngua. Pacotes de limas foram chupadas com sal.Com amargo na boca, derrubou seus medos nos pedregulhos da rua. Medo de não conseguir ser e medo de, sendo, esquecer-se do que foi.


Glauber Piva www.glauberpiva.blogspot.com